Leandro Aghazarm, sócio do Henneberg, Pereira e Linard Advogados. Especialista em Direito Processual Civil pelo Mackenzie.
Artigo publicado no JOTA
Na última semana, muito se comentou no “mundo jurídico” sobre um determinado processo de falência, onde, segundo as manchetes, o Tribunal de Justiça de São Paulo considerou válida a venda de ativo da falida sem a necessidade de aprovação em assembleia de credores. E ainda mais: metade do produto da respectiva venda foi destinado ao pagamento de um único credor.
Surgiu, assim, uma inusitada discussão sobre um possível novo posicionamento do Tribunal paulista, que poderia violar as disposições dos artigos 35, inciso II, 144 e 145 da Lei nº 11.101/05 (Falência, Recuperação Judicial e Extrajudicial), passando a se cogitar a desnecessidade da oitiva dos credores em assembleia geral para casos desse tipo. Outrossim, nasceu o debate sobre a possível violação ao princípio do pars conditio creditorum.
Ocorre que, vale dizer desde já, o referido processo de falência em questão teve algumas peculiaridades que o tornam um caso bem específico, de modo que não se trata, propriamente, de uma nova linha de entendimento do Tribunal, ou da verdadeira desnecessidade de aprovação dos credores para a venda de ativo da falida.
Veja-se, para uma melhor percepção.
Inicialmente, ressalta-se que o ativo vendido no caso se tratava do parque fabril da empresa falida. O aludido imóvel havia sido alienado fiduciariamente pela falida a um Banco, em garantia de uma Cédula de Crédito Imobiliário (CCI), a qual veio a ser adquirida por um determinado credor em 2012, que passou a ser titular do respectivo crédito e, consequentemente, credor fiduciário da falida.
Nesse ponto, é oportuno lembrar que esse tipo de garantia não está sujeita aos processos de falência.
Ocorreu que, no decorrer do aludido processo de falência, o juiz entendeu que teria havido uma renúncia tácita da garantia por parte do respectivo credor. Isso porque, em síntese, ao invés de iniciar o procedimento de consolidação da propriedade fiduciária, o credor optou por ajuizar uma ação de execução da dívida, buscando penhorar outros ativos da devedora (falida).
A garantia, por essa razão, foi liberada pela decisão do juiz a integrar o processo de falência e o tal credor classificado como um credor da classe quirografária.
Porém, ocredor em questão recorreu dessa decisão, sustentando, em resumo, que não havia renunciado à garantia fiduciária em momento algum, nem expressa e nem tacitamente, colacionando julgados para embasar a sua tese.
Contudo, o mérito da questão não chegou a ser julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
A falida e o referido credor firmaram um acordo, onde a falida reconheceu a propriedade fiduciária do credor,o imóvel foi vendido e o valor dividido meio a meio.
É nesse ponto que cingem as peculiaridades desse caso.
Como se vê, o ativo em debate tratava-se de imóvel alienado fiduciariamente a tal credor. Apesar da decisão de primeira instância, liberando a garantia, é certo que não chegou a transitar em julgado, eis que estava sendo desafiada por recurso.
E, antes mesmo do julgamento de mérito do respectivo recurso, as partes transigiram, onde a falida reconheceu a propriedade fiduciária do imóvel pelo credor. Ademais, acordaram no sentido da venda do imóvel e na divisão, meio a meio, sobre o produto da venda.
Vemos, portanto, que não se trata própria e efetivamente da venda de um ativo da falida, sem aprovação dos credores.
Não obstante o juiz ainda tenha concedido prazo aos credores da falida para se manifestarem sobre o acordo, nesse particular, cabe relembrar que o instituto da alienação fiduciária de imóveis é corriqueiro nos negócios jurídicos de nosso país. Com origem no direito romano, mais precisamente na “Lei das Doze Tábuas”, a alienação fiduciária implica na transmissão de bens em forma de garantia.
Com o adimplemento da obrigação garantida, a propriedade fiduciária se extingue e retorna ao patrimônio do garantidor.
Precisamente sobre os negócios envolvendo bens imóveis, tal instituto foi disciplinado pela Lei nº 9.514/1997, que o conceitua como o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.
Ou seja, sem a pretensão de exaurir a matéria e adentrar no próprio mérito do processo de falência em questão, existem diversos elementos que evidenciam as suas particularidades que o tornam um caso bem específico.
E assim, igualmente se conclui que o caso não trata propriamente da venda de ativo da falida, eis que além de tal garantia não estar sujeita aos processos de falência, a propriedade fiduciária do ativo era do referido credor, como reconhecido pela própria falida no dito acordo.
Com efeito, salvo melhor juízo, não há mesmo que se cogitar um novo posicionamento do TJSP sobre a possibilidade de venda de ativo da falida, no respectivo processo, sem a manifestação e aprovação dos credores – ao menos até esse momento.